Ouve-se com
freqüência a frase: ‘Tive uma infância sofrida, por isso fiquei com uma
carência afetiva muito grande’. Esse tipo de depoimento provoca imediatamente
simpatia e compaixão. Surge uma vontade de proteger a pessoa que teve um
passado doloroso. É evidente que muitos falam frases parecidas justamente para
provocar esse tipo de reação, por esperar uma espécie de pagamento por danos sofridos na infância.
Para sabermos se esse tipo de expectativa é justo e
saudável, precisamos compreender as relações existentes entre nossas vivências
infantis e o que somos depois de adultos. Há uma tendência nas pessoas em geral
– e também em muitos psicólogos – de estabelecer uma correlação entre episódios
do passado e traços da personalidade de um adulto. ‘Fulano ficou assim porque
passou por tais situações na infância’ e outras frases do tipo são comuns.
Estudos longitudinais – acompanhamento das mesmas
pessoas por várias décadas – conduzidos nos Estados Unidos têm mostrado
resultados muito importantes. Por exemplo: por duas décadas foram acompanhados
filhos de mães esquizofrênicas, para saber quantos deles cresceriam com
distúrbios psíquicos graves.
É difícil imaginar situação infantil pior, pois
tais mães são totalmente incapazes de manifestações afetivas. Mas o resultado
foi surpreendente: cerca de 15% das crianças cresceram mais equilibradas e
maduras do que a média das pessoas – foram, por isso mesmo, chamadas de super
kids. Muitas evoluíram dentro da média e apenas algumas manifestaram doenças
mentais mais graves.
Tais estudos demonstram que há precipitação no
estabelecimento das correlações entre fatos da infância e condições emocionais
adultas. A coisa não é automática. Não vale raciocinar assim: ‘Passou por isso,
ficou traumatizada e depois manifestou aquilo’. Para muitas pessoas as
adversidades e dificuldades maiores são justamente o que as fazem crescer
fortes e determinadas. Outras crescem derrotadas porque não foram capazes de
ultrapassar os obstáculos.
Umas são derrubadas por obstáculos enormes,
enquanto outras caem por qualquer tipo de problema banal. Tudo depende da força
interior de cada indivíduo e dos estímulos que ele recebe de parentes e outras
pessoas próximas. Vivências infantis equivalentes influem de modo muito variado
sobre como virão a ser os adultos que passaram por elas. De todo modo,
considerar-se muito prejudicado ou traumatizado pelo que se teve de enfrentar
será sempre um sinal de fragilidade, não de força.
Há anos tenho problemas com a expressão carência
afetiva. Ela sugere que algumas pessoas têm maior necessidade de aconchego do
que outras. Que as mais carentes têm direitos especiais, adquiridos em função
de uma história de vida particularmente infeliz. Não é isso que percebo.
Aqueles que se colocam como carentes tiveram vivências pessoais similares às da
maioria das pessoas. Além do mais, não é necessário ser particularmente carente
para gostar, e muito, de ser tratado com amor, carinho e atenção.Para mim, o
que acaba parecendo é que as pessoas mais egoístas – indiscutivelmente as mais
fracas, apesar de serem agressivas e parecerem ter ‘gênio forte’ – usam esse
tipo de argumento para obter maior atenção e carinho do que estão dispostas a dar.
O prejuízo do passado terá de ser recuperado nos relacionamentos afetivos
atuais, de forma que receber mais do que dar estaria justificado por essa
suposta carência. É um argumento bastante maroto, mas capaz de sensibilizar os
bons corações que, com facilidade, se enchem de compaixão e de culpa.
A expressão ‘estou carente’ corresponde também a um
pedido indireto de atenção e afeto, coisa com a qual também não concordo. Não
creio que se deva pedir amor. Ou uma pessoa está encantada comigo, e estará
disposta a ser amorosa e dedicada de forma espontânea, ou eu devo fazer uma
séria autocrítica. Em vez de pedir amor e atenção, talvez eu devesse me ocupar
em dar-lhe tudo o que pudesse lhe agradar. A retribuição virá espontaneamente.
Se não vier, isso significa que a relação afetiva se partiu e não há nada mais
que eu possa fazer.
(Flávio Gikovate)
Fonte: Espaço Psi
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