Há um mistério que intriga a maioria
dos seres racionais desse planeta: a falta de controle sobre a nossa morte.
Intelectuais e poetas sempre manifestaram sua admiração por este tema.
Enxurradas histéricas de novas invenções tecnológicas são nossas
cúmplices no sentimento cego de poder e controle sobre todas as coisas.
Juntas e tacanhas convivem a era do controle, a era touch, a era glass e tantas
outras histerias tecnológicas, que nos fazem sentirmos capitães das fragatas
nas ondas da internet e de nossas vidas.
O fato é que muita gente já morreu alguma vez e nunca desconfiou disso.
Inclusive você, não obstante eu. Porque a gente morre quando levanta da cama e
já corre para olhar o celular. Morre de monotonia, de inércia, de marasmo, de
falta de sonhos e de sonhos não realizados. A gente morre de medo de por o dedo
em riste na cara do próprio medo e de pegar a coragem e seguir caminhando.
Morremos de medo de trocar hábitos, de mudar de ideias, convicções, de
ver as coisas por outra perspectiva e damos um repeat automático nos
comportamentos viciados e ranzinzas. Morremos de medo de olhar para o espelho
da consciência e encarar os olhos nada atrativos das verdades de nossa alma,
pois os reflexos geralmente são indigestos e desagradáveis. Morremos de medo de
colocar em pratos limpos as mazelas de uma relação corroída, mas sustentada,
apesar do visível desgaste, devido à insistência do amor que já não é mais o
mesmo, mas que poderia voltar a ser ainda melhor se fossemos viscerais e
honestos com nós mesmo e com o outro. Morremos na reincidência infinita de
conhecidos ranços e defeitos, dos outros, e nossos. Morremos quando não somos
coerentes com o que sentimos.
Chico Buarque já cantava sobre o tema em sua música Cotidiano:
“Todo dia ela faz tudo sempre igual, me acorda às 6 horas da manhã”. Também na
música Construção: “Beijou sua mulher como se fosse lógico. Ergueu no patamar
quatro paredes flácidas. Sentou pra descansar como se fosse um pássaro. E
flutuou no ar como se fosse um príncipe. E se acabou no chão feito um pacote
bêbado. Morreu na contramão atrapalhando o sábado”.
Na verdade, vivemos cercados de óbitos commoditizados, sem cara nem
desejos. E não sabemos de que forma sair de tão grande e paraplégica falta de
competência de atitudes. Morremos de frio na alma e de falta de verdades. De
amor encoberto e não depurado pela falta de coragem e por excesso de orgulho.
De afeto endurecido e estancado. De gentileza não manifestada numa fala que
deveria ser doce. Morremos de egoísmo e de falta de sensibilidade. Morremos de
silêncios e escapismos. Não botamos para fora o que não nos agrada por medo de
julgamentos. Morremos de preconceitos, de inveja, de ódios e opilações de
fígado. E juramos que esses sentimentos, totalmente anti-civilizados e sem
elegância, se manifestam e pertencem apenas aos outros. Também se morre de
arrogância, de presunção, de soberba. Morre também quem permite que a paixão
morra no sexo e que faz amor fingindo prazer, como quem come um mil folhas
com o nariz completamente entupido.
Muita gente também morre de mediocridade. Pessoas que não são capazes de
reconhecer o valor e os grandes feitos do outro. Sem saber que esta atitude só
demonstra sua fraqueza comissiva de alma e que a mediocridade anda de mãos
dadas com inveja. Muita gente morre de orgulho e nunca pensa na
possibilidade de ceder. Gente que nunca conheceu a grandiosidade do ato de
perdoar, do conforto de um abraço de perdão e do discurso sem máscaras.
Urgente! É preciso ter coragem e força de personalidade para olhar para
dentro de si e, identificar essas pequenas mortes diárias. Fazer delas o combustível
para catarses existenciais que melhorem cada um como ser humano. Que nos
possibilite ver e ter uma vida com mais honestidade, ética, sensibilidade,
poesia, densidade e amor. Ter a coragem de trocar nossas pequenas mortes de
cada dia por sobressaltos cheios de cores, beijos úmidos e risadas altas,
prontas para ocupar os palcos de uma vida mais verdadeira e se
refestelarem soltas ao sabor do vento sem nenhuma amarra ou máscara. Vida longa
e muito amor a todos que se dispuserem ao desafio.
Fonte: OBVIOUS
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