A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”
Eliane Brum, Jornalista, escritora e documentarista. |
A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.
A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.
Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?
Texto de Eliane Brum
Leia o texto Completo: REVISTA ÉPOCA
3 comentários:
Sempre válido que tenhamos uma visão crítica antes de sair fazendo rotulações diagnósticas de forma banalizada. Apesar da variável subjetividade, tod@s nós já nos identificamos com vários critérios que inclinam para um transtorno de qualquer' ordem, o que (vulgarmente) nada mais é que um conjunto de sinais e sintomas apresentados que podem caracterizar ou não. Enfim, penso que não podemos esquecer que depende de como lidamos com esses 'sinais e sintomas' para enquadrar em algum critério diagnóstico. Aliás, de " gênio e Louco todo mundo tem um pouco".
Sempre válido que tenhamos uma visão crítica antes de fazer rotulações diagnósticas. Apesar da importante variável, a subjetividade, tod@s nós nos identificamos com vários critérios que inclinam para um transtorno de qualquer' ordem, o que (vulgarmente) nada mais é que um conjunto de sinais e sintomas apresentados que podem caracterizar ou não um transtorno já instalado. Enfim, penso que não podemos de forma banalizada, esquecer que depende de como lidamos com isso para enquadrar em algum critério diagnóstico, aliás, de " gênio e louco todo mundo tem um pouco".
À parte críticas que possam merecer o manual, e creio que elas sempre existirão enquanto não tivermos exames diagnósticos, simplificações do que é transtorno, algo feito no texto e não no manual, só atrapalham."Distúrbio de Hoarding"claramente não é mera dificuldade em se livrar de coisas, mas sim colecionismo (alguém duvida que exista??) que chega ao ponto do indivíduo dormir na sala por que o quarto está todo ocupado com lixo e tralhas sem uso.
A TPM, que não é, claramente, a mesma coisa de TDPM, que consiste em sintomas de TPM de forma que CLARAMENTE PREJUDIQUE o paciente nas suas relações pessoais/profissionais.A TPM não traz isso, na pior das hipóetes, uma briga com o namorado.
“Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica” - que já existia, não foi inventada pelo DSM, , para quem minimanente lê/leu sobre o assunto ou sobre o manual sabe que não pode ser dado diante de um mero acesso à geladeira, mas sim de um jeito incontrolável, com ingetão de algo em torno de 4 mil kalorias, onde a pessoa perde completamente o controle, ou seja, queria parar naquelas duas horas mais não consegue.Críticas cabem ao DSM, e muitas, mas simplificar o debate com falsos exemplos e superficialidades não ajudam em absolutamente nada.
E bíbia da psiquiatria é forçar...nunca vi um psiquiatra concordar com essa frase, mas a imprensa a repete à exaustão...
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