"Eu fiquei órfã muito cedo, aos 8
anos. Em 9 meses, um câncer levou meu pai. E eu, no auge da minha infância,
achei que a dor da perda seria a maior dor que eu enfrentaria na minha vida.
Doce ilusão. Porque a dor da perda pela morte é uma dor de algo que foi,
acabou. Quando uma pessoa morre, a vida dela nesse plano acaba, e não há o que
se possa fazer para consertar isso. Dói, mas é uma dor conformada. As minhas
dores seguintes foram muito piores.
Uns
2 ou 3 anos depois, não sei ao certo, um homem foi apresentado à minha mãe.
Eles começaram a namorar, e pouco tempo depois ela veio nos perguntar, à mim e
à minha irmã, se nós aceitaríamos que ele morasse conosco. Nossa, que
felicidade! Teríamos pai de novo! Oras, claro que concordamos. E assim foi
feito.
(Aqui
abro parênteses que fiquei muito carente quando o pai morreu, e a minha relação
com minha mãe nunca foi das melhores e mais carinhosas. Eu sentia falta do
carinho do meu pai)
Depois
de algum tempo em que tudo corria bem, um dia ele estava assando carne, e eu
fui me sentar na churrasqueira perto dele. Gostava da companhia dele. Ele
perguntou se eu queria uma massagem. Eu aceitei. Ele começou a massagear meu
ombro. E as mãos foram descendo. E começaram a apalpar meus seios. Eu fiquei
paralisada. Apavorada. Assustada. Mas o que é que estava acontecendo?!?! Eu não
sabia. Em seguida, ele me ofereceu dinheiro pra que eu tirasse a blusa para ele
massagear "melhor". Neguei. Não sei como consegui, mas de alguma
forma neguei e em algum momento saí dali. Eu simplesmente não lembro
como.
A
partir daí, a minha vida em casa virou um inferno. Eu nunca sabia quando - e se
- isso aconteceria de novo. E não tenho bem certeza se aconteceu.
Mas
um dia eu cansei de ter medo. E contei à minha mãe. Na hora, sem titubear, ela
disse que eu estavaMENTINDO. Que aquilo não era possível. Que eu era
muito mentirosa, e estava inventando aquilo.
Tempos
depois (imagino que ela ficou digerindo isso e aceitou que era verdade) ela
veio me dizer que "veja bem, ok, isso aconteceu, mas olha só, tu
andas dentro de casa de top e short, como é que ele não vai fazer, tu estás
provocando!". Rebati veementemente, pois ora essa, estou em casa,
ele é casado com minha mãe, como é que a culpa é minha? Ele é quem deveria
saber que ele não pode fazer isso!
Passada
a fase em que a culpa era minha, veio o "ah, aquele dia ele deve ter
bebido uma cerveja, daí fez isso". Sério, eu não sei como eu ainda
tinha paciência praquilo. A culpa nunca era dele, e eu vivia num inferno, com
medo de ele tentar de novo.
Daí,
passadas todas as fases, quando ela finalmente aceitou o ocorrido, veio o
"eu não posso me separar dele". E não podia se separar
porque era uma relação longa, porque ele ia tomar nossa casa, porque ia tomar
nosso pouco dinheiro, porque qualquer coisa. E eu passei 10 anos vivendo com
ele na mesma casa.
Passei
uma adolescência inteira sonhando com situações de perigo em que a minha mãe me
via e ficava inerte, não me socorria. Sonhava que eu corria risco de vida e
ficava muda, não conseguia gritar e pedir ajuda.
Eu
não sei em que momento isso parou. Não sei se já superei, nem se vou superar. Mas
essa dor, a dor do assédio, da descrença, da culpa sendo jogada em cima de mim,
é muito pior. Porque poderia - e deveria - ser diferente. Isso poderia não
ter acontecido. A minha mãe poderia ter acreditado em mim. Poderia ter expulso
ele de casa. Poderia ter me socorrido. Poderia não ter me culpado.
Em
uma semana em que é divulgada uma pesquisa que demonstra que a maioria das
pessoas (inclusive mulheres) acha que mulheres que se vestem de forma
provocante merecem ser atacadas, e que haveria menos violência se as mulheres
soubessem se comportar, isso tudo vem à tona de novo. Sério mesmo que vocês
acham que é culpa da vítima? Sério mesmo que eu, criança, não podia andar de
short dentro de casa, numa cidade litorânea, em pleno verão, com medo de ser
atacada? Sério que vocês acham que suas filhas inventam isso?
A
propósito, escrevendo o texto, me lembrei que sim, ele tentou me assediar
outras vezes. Mas nessas eu me afastei e não deixei. Eu já tinha me empoderado
em relação a ele.
Mas
não foi só com o padrasto que isso aconteceu. Quando eu tinha uns 11, 12 anos,
eu tinha um amigo cuja casa eu frequentava. Eu gostava muito dele, nos
divertíamos, e ia sempre à casa dele. Como era longe da minha, geralmente minha
mãe ou o pai dele me levavam/traziam.
Um
dia, voltando da casa do amigo de moto com o pai dele, o cara enfiou minha mão
pra dentro da calça dele. Era inverno, lembro da sensação de estar de moletom e
com as mãos pra dentro da manga, então elas ali permaneceram imóveis. Não sei
se encostei no pênis dele, se a mão estava por dentro ou por fora da cueca. Sei
que ele fez isso. Quando me deixou em casa, perguntou se eu tinha gostado. Eu
virei as costas e entrei correndo em casa. Em outras vezes em que estava na
casa desse amigo, ele botava a mão no meio das minhas pernas, dentro do meu
short. Mais do que rezar para que isso não acontecesse, eu rezava para que
ninguém visse, porque morria de vergonha.
Um
dia, o filho dele (que era uns 2 anos mais novo que eu) viu. E quando o pai
saiu do quarto onde brincávamos, ele perguntou "o pai tá passando a mão
em ti, né?". Eu respondi que sim, e ele disse pra contarmos pra mãe
dele. Fomos lá, contamos e voltamos pra brincadeira.
Dois
minutos depois chegam os pais dele dizendo que eu tinha inventado isso (a mãe
do guri foi imediatamente perguntar pro marido e - claro - acreditou nele), e
que se eu não desmentisse então era melhor ir embora. Com força não sei de
onde, eu respondi que "tudo bem, se é assim, então me leva pra minha
casa, porque é verdade e eu não vou desmentir". E assim terminou essa
história de assédio.
Também
teve o pai de uma amiga. Com esse eu já era mais velha, tinha uns 14. Ele tinha
duas filhas mulheres, uma da minha idade e uma de uns 10 àquela época.
Estudávamos juntas, éramos melhores amigas, e eu ia todos os dias à casa dela.
Às vezes, quando minha mãe saía com meu padrasto à noite, eu dormia na casa
dela (não lembro exatamente por que eu não dormia sozinha em casa, mas imagino
que minha mãe pensava que eu estaria mais segura lá). Uma vez, eu estava
dormindo lá, os pais da minha amiga também tinham saído. Eu dormia no quarto
dela e da irmã, no chão. Quando chegaram e a mãe dela foi dormir, o cara veio e
começou a meter a mão por baixo da coberta. Outra vez, paralisada de medo. Ele
tentou me beijar. Aquilo me deu tanto nojo que eu consegui ao menos dizer que
se ele me beijasse eu chamava a esposa dele. Não aconteceu de novo.
Enfim,
isso são relatos que me entristecem muito, mas que mostram uma coisa
importante: há que se ouvir os filhos, percebê-los, protegê-los. O assédio veio
de vários lugares. Me enquadrei nas estatísticas: agressor conhecido, íntimo da
família, tinha minha confiança. Muito chorei. Muito indignei. Tive muitos
pesadelos. E tive que seguir em frente."
Relato extraído do site Cientista que virou mãe (Lígia Moreiras)
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