Obs: quem não assistiu ao filme pode ter algumas surpresas estragadas se ler o texto.
Poucos diretores de cinema sofrem tanta
influência da psicanálise quanto Darren Aronofsky. Em 2000, nas cenas
finais de “Réquiem Para um Sonho”, filmou uma antológica sequencia em
que os personagens se encolhem como fetos. No contexto da história,
estava clara a influência do pensamento de Freud: o ser humano se
origina do inorgânico e, durante toda sua vida, apresenta uma pulsão de
retornar ao estado de ser nada. Em busca do equilíbrio biológico
perfeito (homeostase), os seres humanos possuem uma atração instintiva
pelo útero (o nascer) e pelo túmulo (o morrer). O ser humano luta em
vida, de forma inútil, pelo fim de suas tensões internas. Luta por
saciar-se.
Onze anos depois de “Réquiem Para um
Sonho”, Aronofsky apresenta aos espectadores uma verdadeira aula
introdutória à psicanálise no longa “O Cisne Negro”. Poucos filmes
possuem referências tão perfeitas e bem amarradas à teoria
psicanalítica. Talvez apenas o pesado “O Anticrito”, de Lars Von Trier,
seja tão contundente.
A história do filme é simples. Nina
(Natalie Portman) é uma bailarina que ganha o papel principal na peça “O
Lago dos Cisnes”. Na história, uma princesa que se transforma em um
cisne branco e precisa do amor sincero de um príncipe para retornar à
vida humana. O príncipe, porém, se enfeitiça pelo Cisne Negro, que
apesar de dissimulado apresenta o poder da sedução. O Cisne Branco se
suicida diante do fato. É a morte do amor idealizado.
Nina nasceu para fazer o Cisne Branco.
Completamente castrada, vive com a mãe, que lhe controla toda a vida.
Mora em um quarto cor de rosa, cheio de bichos de pelúcia e demonstra
uma pureza completa. Sua ligação com o sexo é infantil e imatura. Sem
dúvida, o diretor mostra logo de cara que é nesta relação mãe/filha que
mora o segredo do filme.
No roteiro, a figura do pai de Nina nem
sequer é mencionado. A impressão é de que ela é propriedade única e
exclusiva de sua mãe controladora. A simbiose é total. A falta da figura
paterna criou uma relação de dependência doentia entre mãe e filha. A
mãe controla a filha, que aceita de forma masoquista o fato. A mãe de
Nina é o personagem mais interessante do filme, pois mostra uma completa
inconsciência do mal que faz para a filha. Sádica, alimenta o
masoquismo da filha e vice e versa. É exatamente assim que muitas mães
aparentemente legais estragam a vida de seus filhos.
Para conseguir interpretar o Cisne Negro,
porém, Nina precisa se conectar ao seu lado mais ligado aos instintos.
Aqui temos uma clara alusão ao aparelho psíquico montado por Freud. O
Cisne Negro é o id, a parte inconsciente e que só se interessa pela
satisfação do prazer. O Cisne Branco é o superego, o discurso da mãe que
ficou colado à sua imagem. Nina não possui um ego. O superego
monstruoso, construído pela mãe sádica, faz dela um ser sem vida, um
boneco de ventríloquo que responde aos quereres maternos. Não existe
nenhum brilho em sua existência, nenhum desejo. Mas para fazer o Cisne
Negro é exatamente com esse lado desconhecido, encoberto pelo superego
da mãe, que ela terá que entrar em contato.
Para conseguir enxergar esse lado
obscuro, Nina recebe ajuda de seu professor Thomas Leroy (Vincent
Cassel). Ele a intimida, a provoca para que o seu lado negro surja das
profundezas de sua personalidade (ou a falta dela). Sem a figura paterna
do pai, Nina sente ali a presença masculina que pode cortar a relação
doentia com a mãe. Seria como a resolução de um Complexo de Édipo
tardio, com a interferência de um homem mais velho e experimentado.
Conforme Nina se aproxima de seu lado
obscuro, maior a resistência e a culpa. O ódio pela mãe, antes enterrado
profundamente, começa a aparecer e se torna algo insuportável. É neste
momento que a consciência de Nina se parte ao meio. Descobrimos que a
personagem é esquizofrênica. O próprio nome da doença já dá a pista:
“esquizo” significa corte ao meio. Nina agora possui duas identidades: o
Cisne Branco e o Cisne Negro, o superego e o id. E é neste momento que
ela se perde em si mesma, caindo no abismo de um terror sem nome, da
falta de significado de seu mundo interno. É uma ruptura tão dolorosa
que ela não suporta e é invadida completamente pelas emoções do id: no
final do filme, não importam as consequências, ela precisa chegar até o
final da apresentação, até o final de sua satisfação.
O diretor busca em todos os momentos
mostrar essa dualidade. O branco e o preto aparecem em todos os momentos
do filme, em roupas e cenários. A utilização de espelhos nos remete
facilmente à teoria lacaniana. Nina sempre tem um espelho à sua frente e
é ali que ela se confronta com a figura do outro. O ódio pela mãe, por
exemplo, é projetado a todo o momento na figura da colega Lilly (Mila
Kunis). Lilly seria o Cisne Negro perfeito, uma mulher atraente e sem
culpas. Nina enxerga nela o seu duplo, a sua outra parte. E sente ódio,
pois seu superego a pressiona a todo o momento para não entrar em
contato com aquele lado obscuro. Ao mesmo tempo, dentro do conflito de
seu aparelho psíquico, sente inveja e admiração por Lilly.
Assim como as personagens do clássico
“Persona”, de Ingmar Bergman, Nina se confunde com Lilly, enxerga nela a
parte do quebra-cabeças que falta para seu mundo interno se completar.
No fim, Nina se entrega a essa parte obscura de si mesma, mas a culpa
imposta pelo superego é tão grande que lhe resta uma vontade instintiva
de voltar à estabilidade orgânica, ao fim das tensões. Entrar em contato
com o Cisne Negro foi insuportável para Nina, assim como continuar
atuando na vida como o Cisne Branco era um se arrastar diante da
existência. Ao se encontrar com as duas partes de si, Nina não conseguiu
dominá-las e aceitá-las. Na verdade, ela não estava preparada para
isso, pois não tinha ego para suportar, interpretar e simbolizar. Sua
mãe não a libertou, não a deixou crescer. Nina era uma eterna criança
que não teve estrutura para entender a natureza humana. Foi vítima de
seus próprios conflitos internos.
Por André Toso
Por André Toso
VEJA O TRAILER DO FILME:
http://www.youtube.com/watch?v=5jaI1XOB-bs&feature=player_embedded
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